Toda ajuda desnecessária é um obstáculo ao desenvolvimento.
Vocês conhecem minhas irmãs? Não? Pois deveriam.
O mundo seria um lugar melhor e mais divertido se todos tivessem irmãs como as minhas.
Elas fazem parte do meu Conselho de Mulheres, aquelas que, quando eu me aperreio eu procuro. Não são muitas, mas são eficientes demais da conta. Todas elas são profissionais talentosas, filhas, amigas e, claro, mães. E todas elas se preocupam em desempenhar bem esse papel (que iniciaram todas antes de mim), estudam, leem, refletem e tal. A mãe que eu sou hoje deve muito a todas elas. Cada vez que lanço um tema, uma pergunta ou uma angústia, por mais simples que seja, ganho indicações de leituras, opiniões com base sólidas, críticas também, conselhos, diagnósticos, carinho, e por aí vai.
Então Maria Montessori não era uma desconhecida para mim quando chegou a minha vez.
Todos que se interessam por crianças e educação passam em algum momento pela sua obra. Minha irmã sempre dizia “toda ajuda desnecessária é um obstáculo ao desenvolvimento” quando nos orientava nos cuidados com as suas crias. Fortemente impressionada pelos escritos da médica/educadora, ela repetia tanto isso que todos nós na família também decoramos. Eu não sabia naquela época como essa pequena frase era profunda e mudaria a minha forma de encarar a maternidade e a educação das minhas pequenas.
Então é isso. Se fosse para resumir a base daquilo que me guia na criação das minhas meninas eu diria que é o método Montessori. Você pode pesquisar no google e vai encontrar um sem número de referências sobre o método e como aplicá-los na sua casa, na sua vida. Acredite: vai além da decoração do quarto do bebê, beeemmm além. Ele é revolucionário e vai mudar a forma como você vê o mundo. Eu garanto.
Você também pode esperar que eu escreva sobre ele. Vai demorar, rs, mas vai sair em algum momento.
E você pode ler os textos que vou indicar no final, um excelente início de aprofundamento do tema.
É que eu não vim aqui falar sobre o método Montessori hoje.
Eu vim falar sobre a Maria. A mulher que criou o método.
Porque se tem algo mais impressionante que o método é a mulher por trás dele. Presta atenção.
A Maria nasceu no interior da Itália, em 31 de agosto de 1870, numa família vamos dizer assim de classe média, mas que acreditava na educação dos seus. Então a menina teve uma boa educação para os padrões da época, o que já era muito se considerarmos que metade da população italiana não sabia nem ler.
Com 5 anos a família se mudou para Roma e foi ali que a Maria cresceu e se desenvolveu. Contrariando os costumes da sociedade, ela quis estudar medicina e foi de fato uma das primeiras mulheres a se formar na Universidade de Roma na área, em 1896. Para as mulheres que se interessavam estudar era mais comum a pedagogia ou a literatura/artes. Era natural então que seu pai e sua mãe estranhassem a escolha da filha e foram mesmo contra, em razão das muitas dificuldades e preconceitos que ela enfrentou. Ela, no entanto, seguiu firme no seu propósito.
Essas dificuldades e preconceitos, ao invés de fazê-la desistir, na verdade criaram uma forte identidade de gênero, uma preocupação verdadeira com os papéis que eram destinados às mulheres e como elas podem, se não impedidas, ir tão longe. Ela foi assim uma feminista muito ativa no seu meio, participando de congressos e eventos científicos, escrevendo textos, discursos. Essa postura contundente foi um marco por toda a sua vida.
Em 1897, já formada, ela se tornou assistente voluntária na clínica de psiquiatria da Universidade de Roma. Seu trabalho era examinar as crianças em tratamento, que tinham dificuldades de aprendizagem de todo tipo. E foi aí que a mágica aconteceu.
Ela observava as crianças e os tratamentos que recebiam. Percebeu que elas tinham necessidades diversas, precisavam de brinquedos, de ação espontânea, de direcionamento, e que os adultos não estavam preparados para lidar com essas especificidades. Nada disso lhes era oferecido. Ela registrava seus achados, estudava tudo o havia de disponível sobre educação especial de crianças (infelizmente muito pouco na época) e fazia os rascunhos de materiais e teorias pelos quais hoje é conhecida.
O resultado foi que essas crianças, consideradas casos perdidos pelos demais, passaram nos testes nacionais de educação com um desempenho igual ou superior ao da média nacional.
Mas olha que doido. A Maria, observando esse resultado, não ficou feliz. Ela entendeu que se as suas crianças especiais foram capazes de tanto apenas pela mudança no método de ensino, as demais crianças também seriam capazes. Mas você imagina como eram as escolas da época? Se as de hoje já me assustam muitas vezes, nem quero imaginar o que as crianças suportavam para adquirir seus conhecimentos básicos....
Alguns anos depois, houve nova mudança na vida da médica. Encantados com os resultados obtidos por ela, a convidaram para dirigir a Casa das Crianças, uma iniciativa privada, que consistia num local destinado às crianças oriundas de famílias pobres, que ali ficavam enquanto seus pais trabalhavam por turnos comumente superiores a 12 horas diárias. Largadas à própria sorte, essas crianças desenvolviam os piores comportamentos e se tornavam um problema na região.
Eram em torno de 50 crianças. O espaço tinha apenas o básico, todo o resto foi ela quem conseguiu com doações ou o próprio trabalho. Maria garantiu a elas um ambiente limpo, organizado e pouco a pouco levemente enfeitado. Forneceu também alguns brinquedos, papel, tinta e os seus materiais – tudo disponível e adequado às crianças. Sobre esse tempo, ela escreveu:
“Elas foram deixadas em paz e pouco a pouco as crianças começaram a trabalhar com concentração, e a transformação pela qual passaram foi notável. De tímidas e selvagens como eram antes, as crianças se tornaram sociáveis e comunicativas. Elas mostravam uma relação diferente umas com as outras […] As suas personalidades cresceram e, estranho como possa parecer, elas mostravam uma compreensão, atividade, vivacidade e autoconfiança extraordinárias. Elas estavam alegres e felizes”.
A Maria anotava cada observação, impressionada ela mesma com a concentração e o desenvolvimento das crianças. Havia paz e alegria no ambiente. As crianças demonstravam gratidão, gentileza, cuidado com seu ambiente doméstico, e as famílias perceberam isso, e pediram-lhe que ensinasse as crianças a escrever e ler e ela conseguiu a proeza. Todas as crianças foram alfabetizadas, com o uso de materiais desenvolvidos por ela própria naquele momento, num processo mais célere e tranquilo do que os das escolas tradicionais. As famílias ficaram impressionadas, os jornais também. A moça ficou famosa.
Outras Casas das Crianças foram abertas e o método foi aplicado em outras escolas e orfanatos, mas o sucesso foi tanto que Montessori foi proibida de retornar na Casa original após 2 anos de atividades.
Foi nessa época que ela lançou seu primeiro livro sobre o método, com ajuda de um casal muito rico e admirador do seu trabalho. Foi também com a ajuda deles que Montessori fez as primeiras formações de professores. Ela viajou por vários países, principalmente pelos Estados Unidos e Espanha, divulgando o método.
Claro que ela enfrentava críticas – por ser mulher, por ser italiana, por ser uma médica falando de educação, por ser uma educadora tratando de questões médicas, por entrar em questões próximas às crenças religiosas. No entanto, Maria sempre focou o desenvolvimento de suas teorias na observação das crianças e tinha embasamento científico para todas as suas propostas. Ela seguia.
Quando Mussolini, o ditador italiano, chegou ao poder, tomou conhecimento dos trabalhos e da fama da Maria e a convidou para colaborar com seu governo. Ela, encantada com a possibilidade de espalhar o método por todo o país, aceitou. Por conta disso, ela fez alterações nas suas obras, para adequá-las minimamente às crenças do ditador e silenciou publicamente sobre as inconsistências daquela parceria. O método avançou, mas Maria não estava satisfeita com as interferências e as dificuldades crescentes do acirramento do regime.
Em 1933 ela pediu demissão e se afastou totalmente do governo.
Em 1934 ela deixou o país e 2 anos depois suas iniciativas foram todas fechadas. Ela passou então pela Espanha, pela Inglaterra e Holanda.
Já em 1939 ela chegou à Índia, com ajuda inclusive de Mahatma Gandhi. Ela planejava ficar pouco tempo ali, mas a guerra irrompeu e, como cidadã italiana em terras britânicas, foi proibida de deixar o país e teve sua circulação restringida. Foram 7 anos de prisão domiciliar. Seu filho chegou a ser enviado a um campo de concentração, mas foi libertado alguns meses depois. Ela não foi impedida de trabalhar, lecionar, escrever, então a experiência foi muito rica e Maria, já na faixa dos 70 anos, pôde ainda refletir em aspectos da sua obra que eram muito ocidentais, eurocêntricos, além de ter podido observar mais crianças por um tempo maior, já que não podia mesmo sair dali. É dessa época um dos seus livros mais referenciados – A mente absorvente.
Em 1946 Maria e o filho foram libertos, havia chegado ao fim a guerra, e eles foram para a Holanda.
Em 1949 ela voltou à Itália, dando continuidade aos trabalhos paralisados anos antes.
Ela recebeu várias honrarias de vários países e foi indicada 3 vezes ao Prêmio Noel da Paz.
Ela ainda fundou um centro de formação de professores e escreveu diversos livros, sempre muito ativa e à frente dos trabalhos que levavam o seu nome.
Morreu em 1952, sem nunca ter parado de trabalhar pelas crianças.
Cientista, médica, filósofa, pesquisadora, educadora, mãe.
Feminista, defensora dos direitos das crianças e da paz, sempre com fé em um futuro melhor para a humanidade, uma mente inquieta e sempre ativa.
Como não amá-la?
Foi com ela que aprendi o poder da observação das crianças, a necessidade de respeitar o seu tempo e o seu desenvolvimento, a auxiliar ao invés de repreender, a amar incondicionalmente e a confiar no seu potencial. Aprendi a fazer as adaptações necessárias à autonomia das crianças e a dar espaço e tempo para elas.
Hoje, quando olho minhas filhas, não vejo pedaços de mim que vou moldar ao meu querer e a quem vou treinar para me obedecer acima de tudo. Não.
Vejo indivíduos diferentes de mim e brilhantes, a quem devo apoio no despertar de seus múltiplus talentos. Tenho menos frustrações, acredito.
Vejo um caminho para fazer da minha casa um lar mais feliz e em paz.
E aprendi que, se minha criança pode fazer, eu devo deixá-la fazer. Às vezes demora um pouco mais, suja um pouco mais, não fica direitinho como eu gostaria. Mas o esforço e a repetição valem a pena, muito a pena. Porque toda ajuda desnecessária é, na verdade, um obstáculo ao desenvolvimento. =D
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Obs. 1: As mulheres do meu Conselho são todas mães sim. Isso porque você já sabe a essa altura do campeonato que a maternidade é a grande força motriz da minha vida, aquele papel que mais me faz questionar o mundo e repensar todas as minhas convicções internas. Conheço mulheres maravilhosas que não são mães e as ouço com frequência. Mas para me entender e me ajudar mesmo, acho que só sendo mãe também (e meu psicólogo, claro).
Obs. 2: Não deu tempo de contar, mas Maria teve um filho com seu colega da época da Universidade de Roma. As famílias eram contra o casamento e, quando o filho Mário nasceu, em 1898, foi registrado primeiramente sem o nome dos pais e, quando o pais casou e o registrou, Maria foi afastada do filho e, mesmo ao retornar ao seu convívio em 1912, referia-se em público a ele apenas como sobrinho.
Obs. 3: A guerra que irrompeu enquanto Maria estava na Índia foi a Segunda Guerra Mundial. Alemanha, Itália e Japão estavam de um lado, os demais no outro. A Índia era colônia britânica, o que só mudou em 1947.
Obs. 4: Se você acha que a Maria não influenciou tanto assim o mundo, pense aí se você conhece alguma escola cujos materiais (cadeira, mesa, estantes) não são adaptados às crianças? Pois é, antes dela não era assim. E as escolas ensinam de maneira abstrata ou concreta? Se a resposta for mais pro concreto, agradeça à moça. Podia ser mais, eu sei, mas também podia ser pior sem ela. Aliás, pense em qualquer alternativa que estimule a observação da criança, as necessidades e potencialidades desta – isso se deve também a ela.
Obs. 5: Se o tema interessou, minha fonte básica é o site do Lar Montessori. Dá uma olhada nesses 2 links, sobre a Maria e sobre o método:
No Substack quem já escreveu e eu li e gostei foi o Marcelo Hosannah, olha só:
Desse texto você pode seguir por lá para outros, todos relacionados ao método.
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