top of page
Image by Andrew Neel

ENSAIOS

de escrita, culinária, economia e finanças, bem-estar e reflexões sobre parentalidade

Esquerda direita volver

  • Foto do escritor: Juliana Machado
    Juliana Machado
  • 5 de set.
  • 7 min de leitura

Meu pequeno manual para conversas sobre política


Já dizia o sábio: para coisas novas, termos novos. Todavia, tanto faz, ele alertou também, o termo que usamos para definir uma coisa, desde que saibamos do que falamos. Sem isso – termos novos ou clareza de como usamos os já existentes -, a conversa não avança e não conseguimos nos entender.

.

Lembrei disso outro dia quando estudava ciência política e li que a maior dificuldade dela, no seu início como ciência e que perdura ainda hoje, é que termos muito básicos dos seus estudos (democracia, poder, justiça, por exemplo) têm significados diversos a depender do local da discussão, do tempo da discussão e das pessoas envolvidas na discussão. É muito difícil avançar se não há concordância no mínimo.

Por exemplo, a democracia que conhecemos hoje, a que é possível hoje, é muito diversa daquela lá do passado, dos gregos. O mundo mudou tanto, como isso não mudaria também? Já uma partícula de oxigênio tem a mesma configuração, seja no século passado ou hoje, aqui ou no Alasca, independentemente de quem seja o pesquisador. Se falamos de oxigênio, todo mundo entende certinho do que estamos falando.

O autor que eu lia naquele momento alertava que isso se dá inclusive porque há grande carga valorativa em cada um desses termos e que ele mesmo, por mais que se esforçasse para ser imparcial, perderia em algum momento sua neutralidade, porque ele mesmo era um ser do seu tempo, do seu espaço, do seu contexto social, cultural, econômico.

A realidade de quem estuda fenômenos sociais é essa. Não tem jeito. Sigamos, cientes disso, e tentemos nos entender.

.

Eu sempre gostei de conversar sobre política. Sempre gostei de argumentar também. Houve um tempo em que “perco o amigo, mas não perco a discussão” me definiria em muitos campos. Eu tinha muitas certezas.

Embora isso não seja mais verdade faz tempo, e hoje eu seja bem mais a moça das perguntas do que das respostas, debates aprofundados e sinceros ainda me agradam. E acho mesmo que uma boa comunicação resolve uma lista grande de problemas do nosso mundo.

Mas para que esses debates sejam frutíferos, para que possamos avançar de alguma forma, temos que concordar minimamente, ou compreender minimamente, o cenário em que estamos.

E no meu pequeno manual para discussões políticas, uma coisa que acho importante nós nos entendermos é o conceito que damos de esquerda e direta.

Sempre que falamos do cenário partidário, ou de alguma política específica (é raro, mas acontece), ouvimos a referência: fulano é de esquerda, beltrano é de direita. No meio, tem o centro (indecisos, fisiológicos e tal). Hoje também agregamos o “extrema” para designar um espectro ainda mais radical dessa divisão inicial.

E é só isso.

.

A divisão entre esquerda e direita vem da Revolução Francesa (1789) e não indicava inicialmente um posicionamento ideológico prévio e estabelecido, mas a divisão do espaço geográfico dentro da assembleia nacional: à direita do presidente da assembleia ficavam os defensores da monarquia, que obviamente queriam a manutenção dos direitos que tinham e da ordem social como estava, com mudanças bem graduais se e somente se fosse realmente necessário; à esquerda, ficavam todos os que não se encaixavam na nobreza e queriam mudanças mais radicais e mais rápidas, do ponto de vista econômico, mas também social (porque afinal estão intimamente ligados).

Representação da Assembleia Nacional - Pesquisa na internet
Representação da Assembleia Nacional - Pesquisa na internet

Dá para fazer a associação, não é?

Ser de direita hoje significaria de maneira geral ser mais conservador na pauta de costumes e questões sociais, mas liberal na pauta econômica. Já ser de esquerda seria o oposto – progressista na área dos costumes (porque querem mais direitos dos que existem na época) e protecionista no campo econômico.

Aí se você reparar as discussões que ocorrem hoje, vai ver que tem muita gente se intitulando esquerda ou direita (às vezes acusando o coleguinha de direita ou de esquerda também) sem saber bem do que se trata. E você vai perceber que dificilmente pessoas comuns como nós se encaixam perfeitamente num ou noutro espectro. Também vai poder avaliar que, independentemente do campo ideológico ao qual você se afeiçoa, não é um bicho de sete cabeças considerar que o amigo do campo oposto não seja um vilão de marca maior.

Isso, claro, no campo da teoria. Na prática, tem muita gente estranha andando por aí em qualquer espectro político.

E na prática também, assim como não dá mais para considerarmos a democracia do mesmo jeito que Sócrates e seus pupilos consideraram, não dá para achar que uma divisão entre esquerda e direita, mesmo que consideremos o centro e os radicais, seja suficiente para encaixar todas as ideologias de hoje em dia. Não temos mais a mesma composição social da época da Revolução Francesa, o mundo mudou substancialmente. Essa divisão dicotômica do mundo só empobrece e limita o diálogo.

Seria necessário pensarmos em termos novos para coisas novas.

E eles existem.

Mas não caem no conhecimento ou no gosto do público. Isso porque a discussão e o entendimento limitados, essa ideia de “nós e eles” ou “nós X eles” é mais fácil de ser compreendida e espalhada e interessa a quem quer nos manter sob controle. A disputa engaja, sabe? Tem família que o debate político já é mais empolgante do que o campeonato de futebol, a novela ou o BBB.

.

Pense assim: Você conhece alguém que seja a favor da corrupção? Você sabe de alguém que defenda que segurança pública não é uma questão importante? Você acha de verdade que é dever do Estado se meter nas nossas vidas privadas? E você acha que alguém deve ter menos direitos em razão da cor da sua pele, da sua opção sexual ou religião? Tomara que você responda não.

Olha que coisa então. Grosso modo, a arrasadora maioria de nós acredita e quer as mesmas coisas: mais honestidade, mais segurança, o Estado cuidando das coisas públicas e todos tendo direitos iguais. O que nos difere no campo das ideologias são talvez nuances nesses pontos, prioridades, ênfases. Não uma discordância propriamente dita.

Digo isso assim, de maneira exagerada, para deixar claro que não somos inimigos, pessoas com pensamentos irremediavelmente opostos, não em razão da ideologia política. Não é um FLAxFLU.

Mas a gente se sente assim...

E é isso o que acontece quando não balizamos direito o que está em jogo, o que estamos discutindo. Ou quando as pessoas que nos representam não entendem isso e descambam para questões pessoais, interesses próprios, visões superficiais e limitadas no tempo e no espaço.

Não gosto de entrar em temas quentes ou polêmicos, porque escrevo na intenção de ajudar na reflexão e, no calor das emoções, dificilmente há espaço para entendimento e razoabilidade, mas, apenas para fins didáticos, rs, veja por exemplo o recente caso das ameaças do presidente americano à soberania brasileira. Em que espectro político você encaixaria concordar com uma interferência externa no nosso território e governo? Seria uma proposta de direita? Jamais. Seria então de esquerda? Nem pensar.

E inviabilizar discussões no Congresso Nacional para forçar pauta a favor de anistia de investigados, uma pauta aliás que tem um foco em tão poucas pessoas? Alguém checou que assuntos estavam pautados para serem discutidos e decididos naquele dia e não foram?

Aqui, uma breve explicação que anistia anistia mesmo só se concede a quem já foi condenado. E quem já foi condenado passou pelo processo judicial inteiro que, no caso do Brasil, é bem longo e cheio de recursos. Tome cuidado com dois pesos e duas medidas – se você acha que o Lula teve o que merecia, porque os políticos atuais mereceriam tratamento diferente? Mas, se você acha que não houve justiça com ele, seria tão difícil assim imaginar que o mesmo ocorra com outras pessoas? Não tem resposta fácil.

Contudo, é certo que inviabilizar o debate no Congresso Nacional não atende nem a direita nem a esquerda porque inviabiliza a própria democracia, o próprio exercício do poder do povo, representado ali pelos deputados e senadores. Aí a discussão não é se é de direita ou de esquerda, mas se vivemos um regime democrático ou autocrático, do qual a ditadura é a faceta mais conhecida, porém não a única.

Então, toda vez que você se deparar com alguma polêmica na política, pergunte-se se essa é uma questão de ideologia política mesmo? Se for, faça o exercício de pensar onde seria o ponto de encontro entre as partes, aquele mínimo que todo mundo concorda. Ajuda mais na conversa sabermos onde concordamos mais do que onde discordamos.

E se não é uma questão de ideologia, é o que então? Eu perguntaria, a lá Sócrates: que interesses a questão protege, quem se beneficiaria de tal ou qual caminho. Nisso você encontra a resposta. Já adianto que, se a resposta não for o povo, então a questão está fora do campo democrático.

.

Para terminar, um lembrete: política não é futebol – nem eu sou técnica e sei tudo ou mais do que o próprio técnico e o time, nem esse jogo é um “nós X eles”. No jogo da vida real, minha amiga, meu amigo, quando a política desanda, em regra perdemos todos nós.

.

-----

Obs. 1: Simmmm, eu estudo ciência política. Estudar costuma ser a minha saída toda vejo que vejo uma polêmica ou situação para a qual não vejo saída.

Obs. 2: Sinto sim em qualquer direção uma falta de debates sinceros e profundos sobre essas coisas... Mas se alguém chegar com você para uma conversa dessas e disser que tem uma visão imparcial sobre qualquer dessas coisas, você já sabe: desconfie amplamente. =)

Obs. 3: A distinção e o uso inadequado e constante de direita e esquerda mexem comigo demais da conta. Mas tenho outros temas que também me impacientam, como as competências de cada Poder, as falsas dicotomias como social X economia, as minorias, direitos humanos como defensor de bandidos, e por aí vai. 

E você, qual é a sua lista de impaciência? Onde o diálogo acaba? Que temas eu deveria incluir no meu pequeno manual?

Vamos esticar essa prosa? Chá ou café? Biscoito ou bolacha? =D

Comentários


Não é mais possível comentar esta publicação. Contate o proprietário do site para mais informações.
  • Instagram ícone social
  • Facebook
  • Preto Ícone LinkedIn
  • Twitter

©2022 por Ensaios da Ju. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page