Tereza de Benguela e o olhar sobre o passado que explica o presente e leva luz para o futuro
Ontem, 25 de julho, foi meu aniversário. Se você me acompanha aqui, já sabe que não lido bem com a data - mixed fellings, eu resumiria.
Ontem, no entanto, foi um pouco diferente.
Eu havia tirado o dia para descansar e fazer nada, mas as filhas estavam em casa, no restinho que nos sobram ainda de férias escolares. Sentei para ver TV e procurei algum programa que eu gostasse mas que fosse possível a elas desfrutarem também. Raridade, eu sei.
Coloquei o Queer Eye, a versão nova daquele reality show americano em que 5 caras gays transformam em uma semana a vida de um cara hétero. A diferença é que essa nova versão fala muito mais em aceitação, cuidado, comunidade. Uma lindeza só, aula de sensibilidade com leveza no enfrentamento das durezas do nosso mundo doido. Deixar que as minhas filhas tenham contato com diferentes masculinidades já é uma ótima razão para permitir que assistam ao programa (ele passa em inglês, elas não entendem tudo, mas compreendem os contextos). Mas tem mais. Não é sobre 5 gays e um hétero, até porque tem mulheres também, mas sobre amor, autoamor sobretudo.
O episódio que estava passando era sobre uma mulher negra, nova, muito magra e muito pobre, que teve diversas dificuldades e traumas na vida, inclusive expulsa de casa, e que sobreviveu com a ajuda de poucos amigos.
Assim que a viram, ambas as filhas disseram: não gostei dela, mãe. Ué, porque, gente? Vocês nem a conhecem...
Ela é feia, ela tem uma verruga, o dente dela é separado, eu não entendi o cabelo dela, a roupa dela é velha e feia... foram algumas das respostas que recebi.
Pode ser inocência de minha parte, mas fiquei chocada com a naturalidade daqueles comentários duros vindos de meninas tão doces e carinhosas... Respirei fundo e pensei como aproveitar o momento para conversar, havia tantas possibilidades... Enfim disse: Filhas, a gente não gosta só de quem é bonito, beleza não tem nada a ver com ser legal ou bondoso. A pessoa pode ser bonita e maldosa, assim como feia e legal. Essa moça, por exemplo, é muito legal, uma boa amiga, mas sofreu muito e não teve ninguém para ajudá-la a se cuidar, a se amar...
Expliquei o que pude da história do episódio e daquela mulher e elas foram observando. À medida que o programa foi acontecendo, os Fab 5 foram cuidando da moça, trocando as roupas, arrumando os cabelos, maquiando, e ela de fato foi ficando mais bonita. Eu na verdade já tinha achado ela linda desde o primeiro momento, mas é claro que a diferença era visível – esse é o mote do programa.
Pude então mostrar às filhas como a beleza da moça surgiu quando ela foi cuidada, como o que é bonito pode ter vários formatos, cores e tamanhos. Foi no fim uma oportunidade bem boa de construção de conceitos mais amplos para nortear as minhas meninas.
Percebi no entanto que ando falhando no quesito diversidade aqui em casa. Tenho uma filha loira e uma ruiva, ambas muito brancas e estudam em uma escola igualmente pouco diversa. Sempre procurei trazer livros, personagens, desenhos de outras origens raciais, culturais, geográficas, mas vejo que o que elas acharam feio na moça do episódio pode ser apenas um estranhamento oriundo do pouco convívio com etnias diferentes das delas. O que eu tenho feito agora não é mais suficiente e, se eu não acerto o rumo, isso que pode ser só um estranhamento pode se consolidar como conceito de feiura, por exemplo, e assim nasce um preconceito...
Ainda estava pensativa em tudo isso quando lembrei de ir no Instagram ver mensagens de feliz aniversário.
Antes de lê-las, no entanto, vi uma postagem da diva Djamila Ribeiro, lamentando a morte violenta de mais uma menina negra, justo no dia de Tereza de Benguela, no dia das mulheres negras e latino-americanas.
Oi? Meu aniversário é também um dia importante na luta e na história feminista e eu não sabia?
É, minha amiga, meu amigo, é isso mesmo.
Tereza de Benguela foi uma negra que viveu durante o século XVIII na região do Vale do Guaporé, no Mato Grosso. Era companheira de José Piolho, líder do Quilombo do Quariterê. Depois que ele morreu, ela liderou a comunidade por mais de 2 décadas, quando então o quilombo foi destruído por bandeirantes, mais ou menos no fim do século XVIII. Conta-se que a população não era apenas de negros, mas de brancos e indígenas (algo incomum naqueles tempos), que ela governava com alguma noção de democracia participativa e que no seu governo o quilombo se desenvolveu muito na agricultura e no uso do ferro como instrumento de trabalho. Ela manteve um sistema de defesa da área, além de um parlamento e também fazia tratativas comerciais com áreas vizinhas.
Não se sabe ao certo se ela foi morta ou se suicidou-se após ter sido capturada na ação que destruiu definitivamente o quilombo. A certeza, no entanto, é de que ela morreu lutando pela liberdade do seu povo.
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Em 1994, a rainha Tereza foi tema do samba enredo da Unidos da Viradouro – não ganhou, mas pelo menos ficou um pouco mais conhecida de todos. Em 2014, no governo de Dilma Rousseff, foi instituído o 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra (Lei nº 12.987/2014). O Projeto de Lei foi de autoria da senadora Serys Slhessarenko, à época filiada ao PT/MT.
A data também é reconhecida pela ONU desde 1992 como o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, em razão do 1º Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe naquele ano na República Dominicana, o que marcou a sua organização internacional como grupo e como um dia de luta pelas mulheres negras em todo o mundo.
Só esse ano foram planejadas mais de 450 atividades para essa data em 20 estados brasileiros contra o racismo e em favor dos direitos das mulheres negras no nosso país.
Que doido não saber de nada disso até ontem!
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Pode ser doido, mas não é surpresa que eu não soubesse de nada disso.
Mesmo sendo meu aniversário e mesmo sendo os direitos humanos e especialmente as lutas feministas uma área de interesse profundo meu, a verdade é que a história é contada pelos vencedores. Pouco se sabe sobre os que sofreram, os que perderam, os que foram calados...
Quase nada sabemos sobre a resistência negra no Brasil escravocrata, no entanto ela foi e continua sendo tão grande...
Quase nenhum exemplo de mulheres revolucionárias sabemos citar na história do nosso país ou mesmo na do mundo, no entanto elas foram e continuam sendo tantas...
Mesmo quem busca e se interessa pelos assuntos tem dificuldade de encontrar respostas, histórias, fatos, fotos.
Não me admira que minhas filhas estranhem uma mulher negra na TV da casa delas. Não é mesmo comum, o que dirá bonito ou sinal de sucesso.
Foi necessária uma coincidência dessas para que eu me desse conta disso.
Não mais!
Conhecer essas histórias e esses exemplos é o primeiro passo para dar voz aos tantos esquecidos, para aprender com o exemplo de mulheres tão fortes, determinadas e inteligentes e para ensinar a mim e às minhas filhas como o mundo é lindo, diverso e que podemos ser todos mais felizes se formos todos mais livres.
Dia 25 de julho ganhou ainda mais significado no meu calendário. Costumava ser uma data de olhar para trás, para o ontem, para ver o quanto andei, o que conquistei, aonde cheguei. Será agora também uma data para olhar para frente, para o amanhã e para as lutas e conquistas que virão em comunidade.
Viva o 25 de julho! Viva Tereza de Benguela! Viva eu!
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Obs. 1: Para os momentos de relaxar: assiste Queer Eye, na Netflix. Vai te fazer bem.
Obs. 2: Para os momentos de estudo, se te interessar, eu tenho as referências e links que pesquisei.
Obs. 3: A criança referida pela Djamila Ribeiro que morreu violentamente chama Aisha Vitória, de 8 anos. Para ela e sua família, não tem festa e ficam meus sentimentos, minhas preces e o compromisso de juntar forças para que algo assim tão bruto não seja mais tão comum...
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