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ENSAIOS

de escrita, culinária, economia e finanças, bem-estar e reflexões sobre parentalidade

Na Cafeteria

  • Foto do escritor: Juliana Machado
    Juliana Machado
  • 31 de mar.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 31 de mar.



Segunda-feira, 10/03, 8h40

Ele chegou devagar e sentou-se na bancada.

- Bom dia, Dona Fatinha, me veja um expresso duplo, por favor, que estou voltando hoje mas já estou cansado!

- Oh, Vitinho, mas cansado da farra, não é? Porque trabalhar mesmo sei que você não trabalhou essas semanas... se nem veio me ver...

- A senhora sabe que jamais conseguiria trabalhar sem seu café! Estava de férias, viajei. Mas nossa saudade acabou. Voltei – disse ele, com o sorriso aberto mais lindo que ela conhecia.

Ela sorriu, ele sabia lhe cativar e ambos sabiam disso. Saiu para buscar o café dele, que fazia questão ela mesma de fazer.

Ele olhou em volta. A cafeteria estava vazia, como era o costume às segundas pela manhã. Se deu conta de uma mulher que nunca havia visto ali. Sozinha, tomava uma xícara de café coado apenas e olhava atenta pela vidraça para a rua lá fora. Era bonita, embora nada especial; mas se trajava numa elegância distinta, num simples terno feminino, largo e claro, que a destacavam no ambiente. Ele a olhava com interesse; ela não parecia notar nada ali dentro.

Dona Fátima retornou com o café dele e o viu inclinado na direção da moça da janela. Quem é ela, perguntou ele com o olhar.

- Não sei, respondeu, fazendo cara de quem reflete. - Ela começou a vir aqui faz umas semanas. Sempre nesse horário e sempre senta ali, olhando para fora. Pede o seu coado, às vezes um docinho, mas só. Quando chega perto de 9h ela se levanta e sai. Muito educada, mas não bate papo. Não sei se é triste ou só séria mesmo.

Ele a olhava intrigado.

- Não mexe com a moça, Vitinho. Ela está quieta na dela, deixa estar.

- Quem sou eu para atrapalhar o café de alguém, dona Fatinha!, disse ele, retomando a posição de frente para a bancada.

A moça levantou naquele instante. Passou pela bancada, agradeceu e saiu.

Ele saiu em seguida, mas já não a viu, perdida na multidão dos transeuntes. A cafeteria podia estar tranquila, mas a vida lá fora corria e rápido. Ele também correu, seria uma segunda-feira comprida.

 

Terça-feira, 11/03, 9h30

Ele chegou sorridente, passo leve.

- Dona Fatinha, bom dia! Tem café?

- Ora se isso é pergunta, menino! Bom dia. Espere um pouco que vou preparar seu pretinho expresso.

- No capricho, por favor. – disse ele, dando uma piscadela.

Olhou em volta. A cafeteria estava mais movimentada que o dia anterior, mas alcançou com a vista sem esforço a mesa vazia da moça da janela. Dona Fátima retornava com o seu café, quando ele perguntou:

- Aquela moça que sentou ali ontem... a senhora não disse que vinha todo dia?

- Disse e vem. E veio. Mas já foi, são 9h30. Foi como eu lhe falei ontem, Vitinho, ela sai antes das 9h. Deve trabalhar por aqui e deve entrar nesse horário.

- Ah é, disse sorrindo contrariado. Ainda bem que venho aqui mesmo é para lhe ver.

- Ah essa é boa agora – respondeu dona Fátima, rindo solto.

Ele pegou o café, jogou um beijo e partiu.

 

Quarta-feira, 12/03, 9h

Ele entrou apressado e buscou diretamente a mesa perto da vidraça. Ela não estava lá. Conferiu o relógio, eram 9h da manhã. Que droga, havia corrido o que pode, pensou.

Dona Fátima viu a cena e riu discretamente, entendendo a frustração do seu menino.

- Ela já foi... e estava bem bonita hoje, de amarelo. Você precisava de ver.

- Estou sem sorte, pelo jeito. Me veja o café para viagem, dona Fatinha. – respondeu, sem esconder a frustração.

Ela abanou a cabeça, num leve movimento negativo. Isso não ia dar certo. Preparou a embalagem e incluiu um docinho, quem sabe o ajudaria a melhorar o humor.

 

Quinta-feira, 13/03, 8h30

A cafeteria estava quase vazia naquele horário. Ele entrou e dirigiu-se à bancada, como sempre fazia. Olhou em volta, a moça não estava lá.

Dona Fátima vinha entrando no salão e aproximou-se, dizendo:

- Calme, menino, ela ainda não chegou.

Pego no susto, ele sorriu, entre surpreso com a observação e aliviado. Hoje ia vê-la de novo enfim.

Mal sentou-se e ouviu a porta abrir-se. Não deu nem tempo de olhar. Sentiu um perfume doce e leve e soube - era ela passando por detrás dele. Ela parou ao seu lado, na bancada.

- Bom dia -, disse ela à dona Fátima, com um aceno singelo.

- Bom dia, minha filha. Já levo seu coado na mesa.

- A senhora pode acrescentar aquele doce que me serviu no outro dia?

- Claro, levo tudo junto.

- Muito obrigada.

Ele sorriu para ela. Ela o viu, mas não sorriu de volta.

Sentou-se na mesma mesa de sempre, respirou fundo e encarou a vidraça, absorta por algo lá fora. Estava com um vestido longo e solto, estampado com algum padrão étnico que ele não soube identificar. Os cabelos hoje estavam presos, o que realçava seu rosto, seus traços. Viu também que ela trazia uma bolsa larga, dessas que cabe até um computador, mas nada que o ajudasse a deduzir algo sobre ela, seu trabalho ou seu jeito de ser. Mas não usava aliança, isso ele conseguiu checar.

Uma garçonete levou o café coado e o doce para a moça, dona Fátima estava ocupada fazendo o café dele. A moça agradeceu e já deixou tudo pago. Comeu seu doce sem pressa, saboreando cada mordida, mas tomou o café quase num gole só. Não olhou um momento sequer para dentro da cafeteria. Ele observava, impressionado. O que será que havia de tão interessante lá fora?

Ela terminou o café, levantou-se, agradeceu à dona Fátima e saiu. Eram 8h50, ele checou.

Com seu café duplo nas mãos, ele olhou a mesa vazia. Levantou da bancada e foi até à mesa da moça, sentou-se exatamente no mesmo lugar em que ela estava um minuto antes e olhou para fora. Ficou ali um tempo, parado como ela. Dona Fátima viu aquilo e não conseguiu esconder a curiosidade.

- O que você está fazendo aí, menino?

- Quero ver se descubro o que tanto ela olha tão atenta por essa vidraça.

- E descobriu?

- Nada. Nem suspeito o que seja.

Pelo menos hoje a tinha visto, pensou. O dia seria mais leve.

 

Sexta-feira, 14/03, 8h40

- Bom dia, a senhora pode me ver o café coado na mesa?

- Bom dia, minha filha. Levo já. Quer o doce hoje também?

- Hoje não, obrigada.

- Tá certo. Levo já seu café.

Ela foi para sua mesa.

Dona Fátima olhou o relógio e lembrou do seu menino. Sabia que na sexta ele não ia conseguir chegar cedo, quinta-feira sempre foi o início do seu fim de semana.

Ela levou o café da moça, que o tomou como em todos os outros dias das últimas semanas. Em seguida agradeceu novamente e saiu.

Ele não apareceu aquele dia, mas ligou mais tarde e pediu para entregarem seu expresso duplo no escritório. Dona Fátima, falou um pouco envergonhado, ela foi hoje aí? Se você queria saber, devia ter acordado cedo, ora bolas. E desligou.

 

Segunda-feira, 17/03, 8h35

Ele entrou devagarinho na cafeteria, um tanto envergonhado. Ela podia adorá-lo e ser muito simpática, mas quando estava braba a conversa era outra.

- Bom dia, dona Fatinha. Cheguei cedo hoje. -disse de mansinho.

Ela não conseguiu conter o sorriso. O que aquele menino tinha de teimoso tinha também de charmoso.

- Bom dia, meu filho. Ela também.

E apontou com os olhos a mesa da vidraça.

A moça vestia um conjunto bastante formal, corte reto, azul bem escuro. Tinha o ar mais pesado, cansado talvez?, que os outros dias. O cenho levemente franzido, não parecia contente.

- Hoje ela pediu café duplo, com docinho. Parece que o dia não vai ser fácil...

- Então é hoje o meu dia de sorte!

- Como sorte, Vitinho? Ela não está para conversa.

- E quando esteve, dona Fatinha? Mas talvez eu possa alegrar um pouco o dia dela.

- Ah menino teimoso!

Dona Fátima entregou o café dele, que se levantou e foi a passos rápidos até a mesa da janela.

- Com licença, posso sentar? – e apontou a cadeira em frente a ela.

Ela olhou para ele, algo surpresa. Olhou em volta, a cafeteria absolutamente vazia. Respirou fundo e respondeu, sem convicção:

- O espaço é público. – e voltou a olhar a janela.

Ele sorriu e foi puxando a cadeira para se sentar.

- Obrigado, sempre vejo você sentada aqui sozinha e achei que...

- O senhor me desculpe, preciso ir. – disse ela, já levantando-se e olhando em outra direção.

- Mas você nem terminou seu café!

Ela olhou a xícara do café duplo, mal tocada. A frustração era evidente.

- Foi suficiente. Bom dia.

Pegou o docinho que lhe restava, suas coisas, e saiu.

Ele ficou ali alguns instantes, estático. Não sabia o que pensar. Ele não tinha sido mal-educado, metido ou invasivo. Havia pedido para sentar e ela havia deixado. Não era feio, bem ao contrário, estava bem arrumado e cheiroso. Por que ela reagiu assim? Ela nem o olhou direito, nem deixou que ele falasse qualquer coisa, se apresentasse...

Levantou-se depois de alguns minutos, não havia por que continuar ali mesmo. Deu de cara com dona Fátima, que bufava de chateação.

- Eu te falei que ela não queria conversa, não falei?

- Eu não entendo...

- E o que tem para entender, menino? Ela não queria conversa e pronto. Estava tudo ali, bem na cara dela. Se eu perder a cliente eu vou ficar muito braba com você! Esquece isso de uma vez!

Dona Fátima disse, mas sabia só de olhar nos olhos dele que a história ainda ia dar o que falar...

Ele saiu devagar como entrou. A semana já começava desafiadora.

 

Sexta-feira, 21/03, 8h30

Nos dias que se seguiram, ele retornou religiosamente no mesmo horário à cafeteria. Não tentou falar com a moça da janela, mas sentou-se na mesa bem de frente, na mesa ao lado, na mesa de trás. Tentava descobrir o que ela fazia ali, o que tanto olhava lá fora, quem era ela e por que ela não quis conversar e sem motivo nenhum o deixou sozinho naquela segunda-feira.

Ele sabia que ela notava a presença dele, já tinha visto ela lhe olhar algumas poucas vezes, contrariada. Mas ela não mudava – nem a mesa, nem o café, nem o olhar atento pelos vidros da janela. Nada indicava alguma alteração nas disposições dela. Ainda assim, ele não conseguia deixar de lado.

Naquela sexta, no entanto, ele também não estava para muitas conversas – resultado de uma semana intensa (ou de uma noite muito longa, não se sabe ao certo). Chegou cedo na cafeteria, pediu ao atendente seu expresso duplo e sentou-se checando o celular. Dona Fátima fazia alguma coisa na cozinha e não lhe viu. A cafeteria estava um pouco mais cheia que o habitual nesse horário, talvez fosse coisa do fim de semana se aproximando, mas nada que perturbasse o ambiente.

Ela entrou logo em seguida, ele já reconhecia seu perfume, seu andar. Estava leve e sorridente. Vestia jeans e camiseta, como as sextas-feiras pedem, ainda assim muita distinta e elegante. Simpática, dirigiu-se ao atendente e pediu:

- Bom dia, você pode me servir um café coado com aquele docinho de goiabada na mesa, por favor?

- Grande ou pequeno?

- Pequeno. E uma água com gás, por favor.

- Levo já.

- Muito obrigada.

E foi em direção à mesa fatídica. Nem sequer um olhar para os lados. Honestamente era difícil dizer se ela de fato o via ali sentado tão próximo. Será que tinha algum problema de visão?, chegou a cogitar. Ser ignorado o incomodava demais, ainda mais sem saber o motivo. Naquele dia então, o sorriso, a leveza e a educação com a qual tratou o atendente o incomodaram ainda mais. Ele não tinha merecido nem aquela gentileza...

O atendente levou o pedido da moça, recebeu o pagamento e saiu. Ainda deu para ver, por trás dele, um leve sorriso em seu rosto, as feições tranquilas como quem relaxa com o primeiro gole.

Ele não aguentou. O que ele tinha de charmoso tinha também de teimoso, diria dona Fátima. Levantou-se e foi até ela. Não pediu para sentar, mas falou em pé mesmo, para quem quisesse ouvir.

- Olha, eu sei que você não quer conversar, mas eu não consigo entender por quê. Eu fiz alguma coisa errada? Eu desrespeitei você porque quis conversar, só conversar? Porque você prefere ficar sozinha aqui, onde todo mundo pode te ver? E o que você tanto olha por essa janela, que não te permite ver o que tem aqui dentro? Nós estamos aqui os dois todos os dias. Casada eu sei que você não é porque não usa aliança. Por que eu não posso te fazer companhia?

Ele falou aquilo tudo de uma vez, como quem desabafa um grande segredo. Ainda que ela tivesse tentado, não teria conseguido interrompê-lo. Mas pega assim de surpresa, ficou sem reação naquele instante. Havia uma certa emoção, uma raiva até nas suas palavras. Ela olhou em volta, preocupada. Realmente, a voz dele havia ecoado um certo tanto no salão. Não foi intencional, mas até dona Fátima veio lá de dentro ver o que ocorrera.

O sorriso e a leveza sumiram do rosto da moça. Ela tinha retomado a expressão que ele se acostumou a ver naquelas duas semanas. A diferença foi tanta que ele mesmo murchou. Ela respirou solenemente, olhou nos olhos dele e disse, em um tom baixo, porém bem claro:

- Por que não.

Ele, incrédulo, insistiu:

- Como assim por que não? Porque não não é resposta.

Ela olhou para baixo e riu, com certa ironia. Olhou novamente para ele e completou:

- Porque não é uma resposta completa e válida. Não insista. Com licença.

Pegou suas coisas, seu docinho de goiabada, sua água com gás e saiu. Na passagem, gesticulou alguma coisa para dona Fátima, mas ele não entendeu. Na verdade, ele não tinha entendido nada. Desde quando “por que não” é uma resposta válida? Estava mais confuso do que nunca e agora com dor de cabeça também.

A sexta-feira não ia render muita coisa naquela semana já cansada de ser desde o começo.

 

Sexta-feira, 28/03, 8h45

Ele seguiu a semana seguinte inteira indo à cafeteria. Pedia o seu café expresso na bancada e aguardava a chegada da moça. Havia pensado muito sobre o comportamento e a resposta dela e, mesmo sem entender completamente, suspeitava que não fosse uma questão com ele propriamente, não tinha como ser, não tinha dado tempo, mas talvez ela não quisesse conversar com ninguém ali. Insistir, mesmo do jeito que ele fez, talvez tivesse sido sim uma invasão do espaço dela. Não achava que tinha errado, não aceitava, mas, de qualquer forma, perceber que ela deixou de sorrir quando ele lhe falou o entristeceu. Logo ela que sorria tão pouco… Não queria aquilo, bem ao contrário.

Ele ansiava em revê-la, ver se o seu sorriso voltou, se o mal que ele lhe fez, qualquer que tenha isso ele, não tinha sido duradouro. Queria arranjar uma forma de pedir desculpa e se retirar sem culpa, peso ou vergonha. Ainda tinha esperança de um diálogo, é certo, mas essa já era bem pequena. Queria sobretudo entender. Mas não teve chance, nunca mais a viu e nem seu nome descobriu.

Quis perguntar à dona Fátima, mas não teve coragem. Ela provavelmente ainda estava braba por perder a freguesa, ela tinha deixado isso bem claro naqueles dias. O café nunca tinha decido tão amargo...

Ele respirou fundo... que bom que era sexta-feira, iria descansar daquela rotina recém-adquirida. Segunda ele poderia virar a página e recomeçar.

Havia enfim chegado a hora de reconhecer, aceitar e ceder.

“É o que temos”, comentou depois com dona Fátima. “Enfim”, pensou ela.

Deu o último gole no seu expresso e saiu.

Fim.

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