Da série Ah se não fossem as mulheres!

Depois que eu prometi escrever sobre direitos humanos, me deu um nervoso, seguido de um branco. Afinal sobre o que eu pensava ser capaz de falar para fazer tal promessa?
Então eu estava encafifada aqui pensando em por onde começar a escrever sobre um assunto tão caro e tão profundo para mim, por onde seria um bom início de conversa, que tivesse interessância para um público diverso. Foi quando tive a brilhante ideia de ... tchan tchan tchan tchan ... começar pelo começo.
Brilhante, né? Eu sei. =D
E tudo começou com a Declaração Universal de Direitos Humanos, a DUDH para os íntimos.
Na verdade, a preocupação com os direitos humanos sempre existiu, mas na forma como entendemos e estudamos o assunto hoje, esse é o marco que todos concordam que é o início da proteção internacional organizada aos direitos humanos.
E advinha quem conduziu os trabalhos para a elaboração desse documento? Pois é... ah se não fossem as mulheres!!!
Eleanor Roosevelt foi a presidente da Comissão de Direitos Humanos durante as discussões e aprovação da DUDH. Ela foi tão importante no processo, mas tão importante, que foi apelidada de primeira-dama do mundo, isso, claro, numa referência ao seu papel como primeira-dama dos Estados Unidos, já que foi casada com Franklin Delano Roosevelt, presidente daquelas terras de 1933 a 1945.
A Eleanor teve uma educação primorosa antes do casamento. Ela foi enviada para estudar em Londres, onde foi aluna de Marie Souvestre, cujo objetivo era ensinar as meninas a pensarem por conta própria, o que já é raro hoje, avalie naquela época. Eleanor ficou com ela uns 3 anos e depois retornou aos Estados Unidos, já para casar. A danada aprendeu bastante coisa nesse tempo.
Ela casou com Franklin Delano Roosevelt, seu parente, e com ele teve 6 filhos. O Roosevelt dela não foi adquirido no casamento, foi herdado mesmo. Contam que o primo era muito infiel e isso foi um problema desde cedo para o casal, que após um tempo passou a ser mais uma parceria política do que um casamento mesmo. Depois o marido contraiu poliomielite, que o deixou paralisado da cintura para baixo. Eleanor não o abandonou, ao contrário, o apoiou na campanha à presidência do país e durante o governo, até a morte dele.
Mesmo antes da eleição, nossa primeira-dama mundial já atuava em defesa de direitos humanos, muito embora provavelmente não chamassem assim à época. Orgulho da professora. Como primeira-dama americana, fez discursos incisivos, viajou por todo o país e defendeu arduamente as causas que apoiava, especialmente os direitos das mulheres trabalhadoras. Nada de papel meramente figurativo ao lado do marido.
Depois que o marido morreu (1945), ela continuou a atividade política em defesa dos direitos humanos, especialmente das mulheres trabalhadoras, dentro da política do New Deal americano principalmente. Isso quer dizer que ela não defendia os direitos, liberdades e igualdades apenas na teoria – ela era muito pragmática a apoiava questões muito concretas como mais trabalhos para as mulheres, salários iguais, creches públicas e por aí vai.
Ela era tão querida e influente, que alguns políticos cogitaram incluí-la em sua chapa para a presidência seguinte, mas ela não aceitou. Foi quando veio o convite para ser a delegada americana na recém-criada Organização das Nações Unidas, a ONU. Aí ela aceitou. Depois a escolheram para presidir a Comissão de Direitos Humanos da ONU. A fofoca de corredor é que os líderes não esperavam muita coisa dela e da comissão não, talvez só um documento de boas intenções para melhorar a imagem deles e os ânimos no mundo pós Segunda Guerra. Faltou combinar com a Eleanor.
Ela acreditava que todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e estava determinada a promover a causa no mundo todo. A presidência da comissão e a tarefa de organizar um documento que expressasse a proteção e a preocupação com todas as pessoas era a oportunidade perfeita para isso.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos nasceu então em 1948, fruto do esforço e dedicação incansável desta mulher. Reparou que é direitos humanos e não do homem? Quem você acha que fez a troca? Um homem é que não foi, né?
Claro, ela não fez o trabalho sozinha. Com ela havia outras mulheres (e homens, vai) que a ajudaram a formatar um texto possível de ser aceito por toda a comunidade mundial e que orientaria o caminho dos direitos humanos e do direito internacional para sempre. Já participou de reunião de condomínio? Pois é, então você sabe como chegar a um consenso é tarefa árdua até dizer chega.
Ela ia de presidente em presidente, conversava com cada embaixador ou representante de governo, ajustava redações e assim foi se firmando o cenário positivo para a vigência da DUDH. Também... quem diria não a ela?
Até hoje a DUDH é o documento de referência no campo dos direitos humanos e continua muito atual, o que demonstra que o trabalho foi realizado com competência pela equipe da Eleanor. Muitas constituições, a nossa inclusive, se inspiraram nas palavras ali escritas para desenhar o próprio direito interno. Também foi por conta desse trabalho inicial que as organizações internacionais ganharam prestígio e poder, passando inclusive a fiscalizar e a exigir novas normas, dessa vez com caráter mais concreto e com consequências para o seu descumprimento.
E mesmo depois de terminado este trabalho, Eleanor continuou na defesa dos direitos humanos nos Estados Unidos, onde chegou inclusive a compor o governo Kennedy, e por todo o mundo, especialmente os direitos das mulheres e as questões de igualdade racial, ainda um sério problema no seu país de origem.
Contam que, incomodada com a ausência de jornalistas mulheres nos eventos que ia como primeira-dama, ela passou a organizar conferências de imprensa regulares na Casa Branca mesmo, mas apenas para mulheres correspondentes. Foi a forma que ela arranjou para forçar os meios de comunicação a contratarem mais mulheres e a tornar a presença delas mais comum nesses meios.
Teve um outro caso também que eu adorei conhecer. Ela descobriu que uma cantora negra (Marian Anderson) havia sido proibida de usar a Sala da Constituição de Whashington e isso por conta da sua cor mesmo. Ninguém nem negava isso nessa época. Eleanor não conseguiu mudar isso, mas conseguiu que a cantora se apresentasse nas escadarias do monumento comemorativo a Lincoln, algo bem mais marcante e inspirador, sem dúvida.
A danada dava um jeito, e quando não dava para dar um jeito, ela dava um recado.
Ela morreu em 1962, aos 78 anos. Adlai Stevenson, um advogado que falou em seu funeral, disse: “Que outro ser humano tocou e transformou a existência de tantos?” Poucos, eu diria.
Sobre os direitos humanos, ela disse uma vez:
“Afinal, onde começam os Direitos Universais? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior.”
Obrigada, Eleanor!
Seu trabalho não foi em vão.

Não foram poucas as mulheres que se juntaram à luta junto com a Eleanor. Sozinha certamente ela não teria ido tão longe. É importante nomear essas mulheres, para que a gente saiba que, quando a gente quer, a gente se junta, faz e acontece.

Na foto, Angela Jurdak Khoury, do Líbano; Fryderyka Kalinowski, da Polônia; Bodil Begtrup, da Dinamarca; Minerva Bernardino, da República Dominicana; e Hansa Mehta, da Índia.
Prometo voltar a elas.
_____
Obs. 1: Sabe aonde eu peguei as referências iniciais para escrever esse texto? No livro Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes, das minhas filhas. Fico tão feliz de saber que minhas meninas estão crescendo com essas referências! Eu só tive as princesas da Disney (e as problemáticas, né? Porque ninguém merece uma Branca de Neve como referência de vida) e as apresentadoras de programas infantis da TV aberta da época. Se parar para pensar, com essas influências, até que me saí bem na vida. Rs.

Obs. 2: Sabem quem mandou mulheres também para a ONU nessa época? Pois é, nós. Acredita? Bertha Luz foi a representante brasileira que liderou o grupo de delegadas que defendeu especialmente os direitos das mulheres na Carta da ONU. A diplomata e cientista brasileira disse durante os debates que “em nenhum lugar do mundo, havia igualdade completa de direitos com os homens”, e que havia sido encarregada pelo então governo para defender justamente esse ponto na Carta da ONU. Voltarei a ela, certeza.
Comments