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ENSAIOS

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Retroceder, jamais!

  • Foto do escritor: Juliana Machado
    Juliana Machado
  • 24 de ago. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 14 de set. de 2024

Pra frente é que se anda.

 


Pesquisa livre na internet

Uma vez na terapia meu psicólogo me disse uma coisa bem simples a meu respeito, mas que me pegou de surpresa. #quemnunca. Ele disse que eu era incomodada, que havia um incômodo em mim nas coisas como elas são e isso mexia comigo, me inquietava. Isso não é ruim, disse ele, porque você não se acomoda, não se paralisa, você segue tentando mudar. Ele fez um breve histórico a meu respeito, para me fazer ver que eu andava sempre para frente e que já havia andado muito até ali e seguia querendo andar mais.

 

Me peguei lembrando disso outro dia quando me perguntaram por que eu gostava tanto de estudar direitos humanos, já que meu trabalho não tem relação com isso hoje em dia.

É que os direitos humanos são aquela parte do direito que é toda certinha, você protege quem precisa de proteção, defende os mais fracos dos mais fortes, não aceita a realidade como um dado e quer mudar tudo para que todos tenham a chance de realizar o seu potencial, qualquer que seja ele. Não somos mercadoria, nem objetos e valemos por quem somos, todos humanos. Há uma inquietude com as injustiças do mundo e um desejo profundo de alterar a realidade, mesmo que às vezes pareça impossível.

Os direitos humanos seguem adiante e não olham para trás, nesse sentido de que não se dá um passo atrás nas conquistas realizadas.

Sentiu semelhança? Eu senti.

 

Isso é tão forte na área que é um dos princípios que estudamos logo no início da teoria a respeito desses direitos. E vale no Brasil e no mundo. Tem um nome pomposo – “efeito cliquet”, mas quer dizer só isso mesmo: tá proibido o retrocesso.

Quer dizer... “só isso” não, porque na verdade é muita coisa num único princípio.

O André de Carvalho Ramos, um dos autores que tenho mais usado nos meus estudos, definiu que a proibição do retrocesso consiste “na vedação da eliminação da concretização já alcançada na proteção de algum direito, admitindo-se somente aprimoramentos e acréscimos”. Presta atenção que aqui cada palavra conta muito. A vedação (ou proibição) é à eliminação do direito, ou seja, é possível mexer no direito, especialmente para melhorá-lo, mas até para regulá-lo, limitá-lo. O que não pode é deixar de existir, retroceder. Isso, jamais!

 

Aí você está pensando que isso é muito bonito na teoria, mas que a teoria na prática é bem diferente, não é não?

Sim, é verdade que a vida não anda nem fácil nem bonita para as minorias, os desprotegidos ou vulneráveis de qualquer espécie (aliás, me lembrem de escrever sobre esses grupos a que se destinam os direitos humanos, acho péssimo quando entendem que eles se destinam a proteger apenas criminosos).

No entanto, são essas construções teóricas que posteriormente vão fundamentar decisões judiciais, novas leis, novos projetos.

Duvida?


Foi esse princípio que baseou o voto da Ministra Carmen Lúcia contra a volta do voto impresso. na ADI 4543, em 2011. Ela entendeu que existe a proibição do retrocesso político-institucional que o voto impresso representa, por se tratar de um modelo superado por outro (urna eletrônica), que garante mais o voto secreto e a lisura das eleições. Em 2018 a questão voltou a ser debatida e de novo rechaçada pelo STF, o que foi repetido também em 2020.

Também já houve decisão considerando que tratar de formas diferentes a proteção sucessória (herança, principalmente) dos casados oficialmente e daqueles que têm união estável é um retrocesso (RE 878.694/MG). Pensa aí você que não se casou, mas vive em união estável há tempos: sua condição de herdeiro não estaria tão garantida quanto a minha, sabia? E isso só porque eu decidi “casar no papel”, ora vejam só. Não pode. Você tem o mesmo direito que eu e pronto.

E esse foi o princípio mais citado no recente caso do polêmico PL 1904/2024, que equipara o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio. Os protestos contra o PL indicavam que ele trazia um retrocesso profundo nos direitos das mulheres, porque em casos de e#tupr@, por exemplo, o aborto era permitido independentemente do tempo da gestação. E o tempo de gestação importa diante da burocracia e do tempo que leva para alcançar a permissão legal para a sua realização. Houve intensa manifestação popular contrária ao PL e à época ele foi retirado de pauta, mas segue em tramitação (em regime de urgência, diga-se de passagem).

 

Eu poderia citar mais exemplos. O André (já me sinto íntima de tanto tempo que passo com ele – no livro, claro) compilou diversos exemplos muito bacanas que demonstram como um direito humano, mesmo depois de alcançado, requer a nossa vigilância para que não perca seu conteúdo protetivo. Até no direito ambiental ele se aplica (sim, o direito ao meio ambiente equilibrado pode ser considerado um direito humano).

Seja no campo social, ambiental, político-institucional, civil... não importa. Se o direito foi conquistado, registrado, não é possível voltar atrás na sua proteção.


Para nós, brasileiros, a Constituição Federal ainda deu mais uma garantia. Está escrito lá, no artigo 60, §4º: não pode mexer nos direitos e garantias individuais que já estão anotados, o que dá no mesmo que dizer pra não mexer nos direitos humanos. Tá, o texto não é bem assim, mas é tipo isso. Sou da área, mas tenho medo de juridiquês.

E, para completar e dar uma alegriazinha no nosso coração, a Constituição, num momento de iluminação daquele povo do Congresso Nacional, decidiu que conta como direito humano anotado lá todos aqueles frutos de tratados internacionais que o Brasil tenha assinado e que tenham sido aprovados lá no Congresso pelo mesmo procedimento que as emendas constitucionais.


E nessa categoria já temos hoje: a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e o protocolo facultativo; o Tratado de Marraqueche, que visa facilitar o acesso a obras publicadas para pessoas com deficiência visual; e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Todos eles têm políticas públicas para atender aos comandos e deveres ajustados entre os países.

Não mexe nisso!


E vamos adiante porque, assim como meu terapeuta falou de mim, já andamos muito nessa seara de proteção dos direitos humanos. Mas ainda tem estrada pela frente. Ô, se tem! E é pra frente que se anda.


_____ 

Obs. 1: O que meu terapeuta me disse me pegou de surpresa porque, claro, não havia me visto ainda daquele jeito. Sim, havia uma inquietude em mim e eu sabia disso. Mas achava ruim, que eu estava errada e precisava arranjar um jeito de me adequar ao mundo, ao meio. Bem como as minorias tentam também. Ele me mostrou, no entanto, que aquela inquietude era uma força dentro de mim. Eu preciso apenas aprender a controlá-la e direcioná-la. Mexeu comigo, é um processo em curso, quem sabe vira outro texto. Terapia #ficaadica

Recente minha irmã também falou que essa inquietude minha aparece nos meus textos. Será mesmo? Achei interessante. Não é de propósito (bom, nesses de direitos humanos é sim, rs).


Obs. 2: O livro do André de Carvalho Ramos onde consta a definição que citei é o Curso de Direitos Humanos, da editora Saraiva. Estou usando a edição de 2024 e foi de lá que extraí quase todos os exemplos que me referi. Indico.

Fiz as referências às decisões judiciais só para ser justa e caso alguém queira checar, aprofundar, o que super indico. Mas se você não é da área e não tem interesse em aprofundar a leitura, está tudo bem, eu faço essa parte com prazer. Vamos deixar combinado assim então: eu vou citar sempre as fontes, você procura se quiser. Se eu exagera, você avisa.

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