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ENSAIOS

de escrita, culinária, economia e finanças, bem-estar e reflexões sobre parentalidade

Contato de emergência

Foto do escritor: Juliana MachadoJuliana Machado

Atualizado: 14 de set. de 2024



Eu a amei desde o primeiro momento em que a vi.

Tão miúda, tão frágil, olhos pequeninos que pareciam atravessar a nossa alma.

Foi com ela que eu aprendi a amar além da conta, esse amor que transborda da gente e faz com que o tempo da vida ganhe uma outra velocidade, uma outra importância. O primeiro passo, a primeira palavra, a primeira escola. Quem se importa com a notícia do jornal, a crise política ou econômica do momento? O que é relevante mesmo é saber como foi a apresentação do dia, o dever de casa, a consulta do médico e o marco de desenvolvimento ultrapassado.

Eu era apenas uma para ela, mas para mim ela era única e toda especial. Ela era, e ainda é, a minha princesa.


Então você entende a honra que senti quando a mãe dela, a mais exigente de todas as mães que eu conhecia, me escolheu para ser um dos contatos de emergência da escola. Tá certo que provavelmente eu era a última da lista e provavelmente estava lá porque conseguiria me locomover rapidamente caso houvesse necessidade, e Deus nos livre que houvesse uma. Mas ainda assim eu me senti especial para ela naquele instante. Ela confiaria em mim se fosse necessário e isso me bastava.


Até que o fatídico dia chegou.

No meio do expediente, uma ligação estranha, um número desconhecido. Sra Juliana, aqui é da escola, a princesa está muito tristinha, no canto, e não quer falar com ninguém. Achamos melhor avisar a família. Não diga mais nada, minha senhora, estou a caminho – respondi.

E saí esbaforida como se nossas vidas – a dela e a minha - dependessem da rapidez com que eu chegaria até ela, havia uma urgência danada no ar e eu dirigi com toda a velocidade e imprudência permitida a essas circunstâncias especiais e devo ter chegado lá em bem poucos minutos mesmo, mesmo sendo aquele trânsito caótico da minha cidade natal.


Entrei na escola e me dirigi à sala da bonitinha como um raio. Ela vinha cabisbaixa e quando me viu, correu em minha direção (ou eu corri em direção a ela? já não sei mais). Me abaixei e a abracei apertado. Ela chorou e eu também. Pareceu um abraço longo e sentido, mas deve ser só a minha lembrança mesmo, porque em seguida ouvi a mãe se aproximar, igualmente esbaforida, e tirá-la de mim. Como ousava ela?, devo ter pensado em uma fração de segundo. Eu tinha tudo sob controle.

Com ousava eu!, disse-me ela. Sem perceber, entrei no espaço onde só as crianças são permitidas, adulto nenhum entrava ali e essa era uma regra de ouro da escola. E por que eu chorei? Não podia ter chorado, precisava demonstrar confiança na escola, me explicou a mãe. Era preciso ser forte e acolher sem demonstrar fragilidade ou desconfiança. A mãe conversou rapidamente com a professora e se retirou, talvez até mesmo antes de mim.


Eu me espantei. Jamais havia passado pela minha cabeça tamanha complexidade em um evento tão simples. Me recompus, enxuguei discretamente uma lágrima que insistia em cair e pedi desculpas à professora pela invasão do espaço. Saí e, nada mais havendo para mim ali, retornei ao trabalho, mexida com a experiência. No coração, a certeza de que quando ela precisou eu estava lá (e a dúvida se isso não era mesmo suficiente...). E fui a primeira. Ha!

...


Muitos anos se passaram desde esse evento e até hoje me lembro dele quando penso em acolher alguém que sofre. Ainda acho que um abraço pode não resolver muita coisa, mas ajuda em todas elas, e não tenho vergonha mais de chorar de quando em vez, mesmo diante das minhas crias. Mas os anos cuidaram de demonstrar que existem mesmo circunstâncias e contextos que devem ser respeitados se o que se almeja é um crescimento forte e um bem-estar duradouro.


Sei também que, por melhor tia que eu seja, o papel que uma mãe desempenha na vida de um filho é sem igual, assim como o seu colo e o seu abraço. E sei também que a minha princesa sabe, assim como meus sobrinhos e minhas filhas também, que se ela precisar, ou mesmo que não precise mas se me chamar, eu corro, eu voo, eu me desfaço mas eu chego. Posso não conseguir mais ser a primeira e posso não ter muito o mais o que dar, mas o abraço e as mãos dadas estão garantidos. Sempre.


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Obs. 1: Se me lembro bem, e memória nunca foi meu forte (porque você acha que eu escrevo?), o caso foi uma mordida ocorrida dentro de sala. A princesa se assustou e não conseguiu nem chorar, nem avisar as professoras a tempo, que só identificaram a meliante depois. E, sim, minha princesa não somente sobreviveu, como floresceu e hoje eu tenho é pena de quem se meter a besta com ela. Orgulho da titia.

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